Gênesis 20

Abraão tem 99 anos mas ainda pratica o nomadismo e chega assim com toda a sua tribo no reino de Abimeleque, rei de Gerar.

Com medo de ser morto por quem quisessem ficar com sua mulher, Abraão usou do mesmo artifício que havia adotado tempos antes no Egito (Gênesis 12.11-13) e disse que Sara era sua irmã. 

O rei Abimeleque, ouvindo isso, mandou buscar Sara apesar dela já estar com idade avançada. 

Na mesma noite Deus intervém junto a Abimeleque em sonhos : “Eis que morto serás por causa da mulher que tomaste; porque ela tem marido.” Gênesis 20:3

Abimeleque ficou apavorado. Ele disse a Deus que tinha feito aquilo inocentemente, induzido pela mentira do próprio marido. Deus respondeu que sabia disso e que por essa causa havia impedido que Abimeleque tivesse relações com a mulher de Abraão. 

O Senhor disse ainda que o rei deveria, em face do ocorrido, restituir Sara ao seu marido sob pena de ser punido com a morte, juntamente com toda a sua casa e que, fazendo isso, Abraão oraria por ele para que nenhum mal lhe sobreviesse.

Essa história já havia acontecido no passado. A primeira vez, foi quando eram bem mais jovens e Sarai “uma linda mulher”, eles chegam ao Egito fugindo da seca que castigava Canaã. Argumentando o medo que cobicem sua mulher e o matem para se apoderar dela, Abrão a apresenta como sua irmã (Gên 12 :18-20 e 13 :1 e 2). Rapidamente Faraó fica sabendo do fato, toma-a por mulher e age de forma muito generosa com Abrão, enriquecendo-o de animais e escravos em grande quantidade. O desfecho dessa situação vem sem mais tardar : o Egito é punido com grandes pragas e, furioso, Faraó os expulsa do país. Com o dote que recebe de Faraó, enquanto irmão da noiva, Abrão sai do Egito ainda mais rico do que chegou. Por precaução, Faraó envia uma tropa para acompanhá-los à fronteira, garantia de se ver livre deles e assim liberar o país da punição que os destruía. 

Quando essa mesma cena se reproduz com o rei Abimeleque, entre amedrontado e furioso, o rei procura uma explicação com Abraão, e a história que conta Abrão é idêntica à primeira, mas um diálogo se instala entre ele e o rei.

Gênesis 20:11-13

E disse Abraão: Porque eu dizia comigo: Certamente não há temor de Deus neste lugar, e eles me matarão por causa da minha mulher.

E, na verdade, é ela também minha irmã, filha de meu pai, mas não filha da minha mãe; e veio a ser minha mulher;

E aconteceu que, fazendo-me Deus sair errante da casa de meu pai, eu lhe disse: Seja esta a graça que me farás em todo o lugar aonde chegarmos, dize de mim: É meu irmão.

Abimeleque devolveu Sara a Abraão e ainda lhe deu ovelhas, bois e escravos. Além disso, concedeu a liberdade de se fixar onde quisesse em seu reino. Pagou ainda mil peças de prata como reparação pelo dano moral que havia causado a Sara.

Ouvindo a oração de Abraão, Deus curou Abimeleque, sua esposa e suas servas e elas puderam novamente ter filhos, pois o Senhor havia punido todas aquelas mulheres com esterilidade por causa de Sara.

Deixo aqui em parênteses, um estudo da psicóloga Marlene Iucksch, ela faz uma alegoria sobre esse episódio que me fez pensar:

Abrão e Saraï são irmão e irmã, criados como tal. Quando deixam a casa do pai, já casados, devem mudar de papéis, transitar do laço sanguíneo e familiar a um vínculo de aliança: marido e mulher, unidos pelo desejo e pelo rito que os institui. 

Nômades, por ordem divina, Abrão e Sarai talvez viram-se perdidos de seus lugares de sujeitos por falta de palavras que lhes indicassem o caminho. Abrão diz claramente que começou a ter medo no exato momento em que deixou a casa do pai e se encontrou enfim (sós !) marido da irmã.

Abimeleque não a tocou, pois, durante a noite, Deus se dirige a ele, revelando o casamento que Abraão não ousa revelar. Contrariamente aos medos de Abraão o velho rei crê no Deus único e ouve a sua palavra.

Para resumir a situação, eu diria que, numa sorte de história circular, Abraão se encontra diante de « Meu Pai Rei » (significado do nome de Abimeleque), que ocupa assim o lugar de um pai simbólico, recusando a Abraão de retomar « Princesa » (Sara) de seu marido para fazê-la de novo « Minha Princesa » (Sarai), como foi batizada pelo pai.

À Abimeleque, Abraão conta o segredo de família que o acompanha desde sempre.

Depois dessa revelação, “ Meu Pai Rei “, entrega “Princesa “ ao homem que pela mudança de nome se tornou “ Pai de multidões “ na espera que uma vez liberados da relação incestuosa, a vinda do filho seja possível.

Lembro que foi ainda debaixo do teto do pai de ambos que, uma vez declarados marido e mulher, a esterilidade de Sarai foi atestada.

Para concluir o ritual de desatamento “Meu Pai Rei “ cobre-lhes de presentes, como se faz aos noivos em dia de núpcias e termina-se assim o jogo ao qual se obrigavam : marido e mulher enviando-se à outro parceiro sexual, com todo o sofrimento e riscos ao qual se expunham.

A mudança do nome desamarra a filha do lugar que ocupa no desejo incestuoso do pai e a prepara para tomar lugar junto do marido.

No encontro com Abimeleque conclui-se que, finalmente, podem unir-se em aliança e um lugar lhes é dado para viver, nas terras do rei, diante deste (Gên 20 :14-16).

Pega por um braço, entregue pelo outro, Sara é restituída e “ justificada “, termo que restabelece a inocência (de atos e palavras) de um suposto culpado. Encontramos assim a culpa no íntimo da relação do casal e que os acompanhou até a velhice, até esse encontro liberador, culpa que os aprisionava ao pai de ambos…

Nenhum comentário: